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By Ferramentas Blog

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Ó deuses, renovai esses horrores

A sacerdotisa anfrísia lhe respondeu brevemente: “Nós não temos tais desígnios pérfidos; deixa de estar em cuidado; estas armas não trazem violência: o ingente porteiro pode à vontade, do fundo do seu antro, ladrar eternamente e aterroriza as Sombras exangues; a casta Prosérpina pode habitar a morada do seu tio. O troiano Enéias, insigne pela piedade e pelas façanhas, desce para ver seu pai entre as sombras profundas do Erebo. Se o exemplo de tal piedade não te comove, reconhece, ao menos, este ramo”. E ela lhe mostra o ramo que estava escondido sob suas vestes. O coração de Caronte, túmido de cólera, então se acalma. Ela nada mais diz; ele, admirando o venerável dom do ramo fatal, que não via há muito tempo, volta para eles a popa sombria e se aproxima da praia. A seguir, afasta as outras almas, que estavam sentadas ao longo dos bancos, esvazia o convés e recebe no seu bojo o enorme Enéias. A frágil barca gemeu sob o peso, e, pelas fendas, recebeu muita água da lagoa estígia. Enfim expõe, são e salvo, além do rio, a sacerdotisa e o guerreiro, sobre o limo informe e entre o verde morraçal.
Lá estão os remos que o enorme Cérbero abala com o ladrar da sua tríplice goela; o monstro está deitado no antro, em frente da margem. A sacerdotisa, vendo já seu pescoço se eriçar de serpentes, lança-lhe um bolo soporífero composto de mel e de grãos preparados; o animal, com fome devoradora, abre suas três goelas e engole o que lhe lançam, estende-se no solo e com seus costados imensos enche todo o antro. Enéias apressa-se a transpor a entrada, enquanto o guardião está sepulto no sono, e se afasta rapidamente da margem de onda irremeável.
Repentinamente ouviram-se vozes, e um enorme vagido: almas infantis que choravam, as quais, no limiar da existência, sombrio dia arrancou sem que tivessem conhecido a doçura da vida, roubadas ao seio materno para serem mergulhadas na morte cruel. Perto delas, os inocentes, que foram condenados à morte por erro. Esses lugares não são determinados sem tribunal tirado à sorte, nem sem juizes: Minos, como juiz, agita a urna; é ele que convoca a Assembléia dos Silenciosos e que inquire da sua vida e dos seus crimes. Depois, ao lado, estão, acabrunhados de tristeza, aqueles que sem ter feito nenhum mal se suicidaram com sua própria mão, e que, odiando a luz, rejeitaram a vida. Como eles quereriam agora, sob o éter elevado, sofrer a pobreza e os duros trabalhos! O destino a isto se opõe, e o pântano odioso de onda triste os prende e o Estige dividido em nove braços os aprisiona.
Não longe dali se estendem por todos os lados os campos das Lágrimas: assim são chamados. Lá, aqueles que um duro amor devorou numa cruel consumpção, encontram, afastados, veredas que os escondem e florestas de mirtos que os abriga; seus tormentos não os abandonam nem mesmo na morte. Vê, nesses lugares, Fedra e Prócris, e a triste Erifila mostrando as feridas que um cruel filho lhe fez, e Evadne e Pasífae; Laodamia as acompanha, e Ceneu, donzel outrora, agora mulher, é revestido pelo destino com seu primitivo sexo.
Entre estas, a fenícia Dido, sangrando ainda da ferida, errava pela grande floresta; logo que o herói troiano chegou perto dela e a reconheceu, obscura, entre as sombras, como, no começo do mês se vê ou se julga ver a lua entre as nuvens, deixou as lágrimas correrem e lhe diz com doce amor: “Infortunada Dido! era pois verdade que não vivias mais e que, com o ferro na mão, seguiste o partido extremo! Da tua morte, ai de mim! fui eu a causa. Juro pelas constelações, pelos deuses do alto, e por tudo aquilo que há de sagrado nas profundezas da terra, foi, malgrado meu, ó rainha, que abandonei tuas plagas. Não fiz senão obedecer aos deuses, cujas ordens imperiosas me forçam agora a ir por entre estas sombras, por entre estes lugares cobertos de espantosos espinheiros e esta noite profunda. Não poderia crer que minha partida te causaria tão grande dor...  Detém-te! Não fujas aos meus olhares! de quem foges? E a última vez que o destino me permite te falar”.
Com tais palavras, Enéias tentava abrandar aquela alma ardente, de torvo olhar, e procurava arrancar-lhe lágrimas. Mas ela, voltando a cabeça, tinha os olhos fixos no solo; seu rosto não se altera com essa tentativa de conversação, como se ela fosse dura pedra ou um alto contraforte do Marpesso. Finalmente retirou-se e fugiu, hostil, para a floresta umbrosa, onde seu primeiro esposo, Siqueu, corresponde a seus cuidados e partilha seu amor. Enéias, todavia, abalado por essa iníqua desgraça, segue-a ao longe, chorando, e, enquanto ela se afasta, ele dela se compadece.
Dali continua o caminho que lhe foi determinado. Já atingiam os campos mais recuados que, separados, freqüentam os varões ilustres na guerra. Lá lhe saiu ao encontro Tideu, aqui Partenopeu, célebre pelas suas armas, e a imagem do pálido Adrasto. Lá estão os dardânidas tombados na guerra e tão chorados pelo mundo de cima. Em os vendo desfilar a todos, em longa fila, Enéias geme; reconhece Glauco, Medote, Tersíloco, os três filhos de Antenor, Polibetes, consagrado a Ceres, e Ideu, tendo, ainda, as suas rédeas, ainda, suas armas. Essas almas o cercam, à direita e à esquerda, em grande número; não lhes é bastante tê-lo visto uma vez; apraz-lhes até demorar-se, seguir seus passos, informar-se da causa da sua visita. Mas os chefes dos dânaos e as falanges de Agamenão, apenas perceberam o herói e as suas armas brilhantes, tremeram presa de enorme pavor: uns voltam as costas, como outrora, quando fugiam para seus navios; outros emitem débil grito; o clamor começado expira na boca em vão escancarada.
Lá também ele viu o filho de Príamo, Deífobo, com o corpo todo retalhado, o rosto cruelmente golpeado e ambas as mãos e orelhas arrancadas, as têmporas feridas e o nariz mutilado com horrível ferida. Enéias a custo o reconhece, e ele, trêmulo, esconde suas cruéis feridas; mas aquele o chama com palavras familiares: “Deífobo, poderoso pelas armas, nascido do generoso sangue de Teucro, quem pois ousou infligir-te tão cruel suplício? Quem assim te pôde tratar? Ouvi dizer, na última noite de Tróia, que, cansado de uma vasta carnificina, caíras sobre um montão informe de cadáveres. Então eu mesmo levantei um túmulo vazio sobre a margem do Reteu, e três vezes, em altos brados, invoquei teus Manes. Teu nome e tuas armas consagram aquele lugar; mas a ti, meu amigo, não pude encontrar nem te depositar, ao partir, na terra da pátria”. O filho de Príamo lhe responde: “Nada esqueceste, meu amigo; cumpriste todas as obrigações para com Deífobo e para com a sombra do seu cadáver. Mas meu destino e o crime da lacônia me mergulharam neste abismo de males: eis a lembrança que ela me deixou. Em que enganosas alegrias passamos a noite suprema, tu o sabes, e é muito necessário que nos lembremos! Quando o fatal cavalo galgou a alta Pérgamo e para ela conduziu a infantaria armada que seus flancos guardavam, ela, simulando um coro, conduzia à volta do cavalo as mulheres frígias que celebravam as orgias; no meio delas, segurava um grande facho e chamava os dânaos do cume da cidadela. Estava, então, acabrunhado de pesares e oprimido pelo sono; estendido sobre meu infortunado leito, dormi, invadido por doce e profundo repouso, muito semelhante à tranqüila morte. Durante esse tempo minha excelente esposa retira todas as armas do palácio, depois de ter levado da cabeceira do meu leito minha fiel espada. Chama Menelau para dentro do palácio e lhe abre as portas, esperando sem dúvida que essa bela ação seduziria o homem que a amava, e que assim poderia apagar a lembrança do antigo adultério. Que direi? Eles precipitam-se para o meu aposento, e um companheiro a eles se junta, o instigador de crimes, o neto de Éolo. Ó deuses, renovai esses horrores contra os gregos, se é com piedosa boca que reclamo vingança! Mas tu, dize-me, por tua vez, que acontecimentos te trouxeram vivo a este lugar? Porventura vens trazido pelos cursos errantes do mar ou por conselho dos deuses? Ou que outra desgraça te persegue para que afrontes estas tristes moradas sem sol, estes lugares sombrios?”

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